A HISTÓRIA DE CARMINHA E SAMUEL
1
Só se luta nessa vida
Depois os filhos crescem
O que nos espera é a morte
As vistas escurecem
Ficam dois velhos em casa
Pouco a pouco emudecem
2
E ninguém fala mais nada
Se jogam lá num sofá
Vai tudo se acomodando
Esperando a morte chegar
Nem sabem se está perto
Já começam a esperar
3
Numa situação assim
Carminha contou que vivia
Trancada com seu marido
Que só Deus acudia
Pois até pra ir ao banco
Era alguém pra ela ia
4
Nem comida mais fazia
O fogão era brilhando
Os dois assim arreados
Iam se mumificando
Às vezes um marmitex
E que estava lhes salvando
5
A velha disse que um dia
Num surto de impaciência
Olhou pro velho e pensou
Pra que na vida decência
Temos dinheiro pra nada
Estou perdendo a paciência
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Se esse troço velho
Se for do mundo primeiro
Juro que eu corro no banco
E rapo todo o dinheiro
Vou viver o que me resta
Conhecer o mundo inteiro
7
Só vou deixar reservado
O dinheiro do caixão
Deus me livre de mais velho
Só vou querer garotão
Pra torrar todo dinheiro
E viver com emoção
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Parece que foi macumba
O velho logo sucumbiu
Nem sentava mais no sofá
Por causa do estado febril
Não passou uma semana
Queimou o resto do pavio
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Quarenta e cinco anos
Durou esse casamento
Mas temos que admitir
Aquilo já era tormento
E esse povo vivia junto
Por causa dum juramento
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Enterraram logo velho
Ela voltou pra sua morada
Por dentro estava contente
Iria dormir sossegada
Os filhos iam lhe acompanhar
Mais ela disse que nada
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Vocês fiquem sossegados
Se é por causa de fantasma
Ele já ficou enterrado
Acabou-se crise de asma
Me acordando de madrugada
Pra ir atrás de cataplasma
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Os filhos se entre olharam
Não entenderam nada não
Disseram ela melhora
Passou por muita pressão
Mais eles se enganaram
A velha não mudou não
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No outro dia amanheceu
Bem disposta e descansada
Separou todo dinheiro
E saiu no mundo largada
Nem deixou o do caixão
Ela saiu foi disparada
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E logo no primeiro dia
Deu um desejo realizou
Foi no cinema ver Zorro
A velhinha se empolgou
Passou numa loja chique
E roupa nova ela comprou
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Botou batom vermelho
Parecia bem mais nova
Hospedou-se num hotel
Toda linda e cheirosa
De noite pediu champanhe
Estava mesmo gloriosa
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A gastança começou
Era rica de montão
Gorjeta sempre incluída
A coroa fazia questão
O tratamento de rainha
Lhe dava satisfação
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Vamos deixá-la relaxando
Na sua cama acolchoada
Planejando suas aventuras
E ver como estão os filhos
Pois eles não tinham pista
Onde enfiou-se esta danada
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Estava todo muito doido
Até na polícia tinham ido
Já fazia alguns dias
Que a velha tinha partido
E a preocupação maior era
Que a grana tinha sumido
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Carminha tinha retrato
Em tudo quanto é jornal
E seu rostinho estampado
Causou comoção geral
Agora ela era importante
Por causa do capital
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Achem nossa mãe querida
Daremos gratificação
Tem que tomar remédio
Sofre muito da pressão
Seus filhos estão tristes
Passando por aflição
21
No anuncio a foto de dela
Com uma carinha de vovó
Colada no ponto de ônibus
O povo lia e tinha dó
Mais ninguém dava noticia
A velhinha virou pó
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Mas era pó de maquiagem
Estava muito mudada
Não vestia mais vestidão
Agora era legge colada
Um dia ela viu sua foto
E deu muita gargalhada
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Quem lhe reconheceria
Ainda mais com Samuel
Um garçom simpático
Que ela conheceu no hotel
Só viviam de mãos dadas
A coroa estava no céu
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Um dia no ponto de ônibus
Samuel olhou pra tal foto
E disse para Carminha
Que velha tão amarela
Carminha disse é mesmo
Eu estou até com pena dela
25
O garçom nem desconfiou
Nada daquela gracinha
Estava mesmo mudada
A danada da Carminha
O que o dinheiro não faz
Ela virou uma cocotinha
26
Mais ela podia ser pega
Facilitar não convinha
Ela disse pra Samuel
Que tal Porto de Galinha
Ele disse boa idéia
E rodopiou a velhinha
27
Da Bahia a Porto de Galinha
É chão que nem o cão
Foram de São Geraldo
Ela não entrava em avião
Dois dias sentados num banco
Deu pra falar um montão
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Falou das doenças do velho
E o pijama azul desbotado
Da barba de presidiário
E o olhão arregalado
Dos gritos que ele dava
Acordando apavorado
29
Falou também dos filhos
Casal de praga que tinha
Eles nunca visitavam
A pobre vivia sozinha
Falando com as paredes
O velho só tosse tinha
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Aí o rapaz lhe abraçou
Deu lhe um beijo apaixonado
Prometeu ficar com ela
Nunca sair do seu lado
Pois até lhe conhecer
Também vivia aperreado
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Ficou sem mãe muito cedo
E nos vinte um ano de idade
O seu pobre coração
Era morada da saudade
Sofria muito nesse mundo
Passando dificuldade
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Carminha quase chorando
Disse muito emocionada
Que não lhe daria filho
Por estar muito passada
E Samuel só lhe disse
Cuide de mim e mais nada
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Chegaram em Pernambuco
Compraram um bangalô
Era bem perto do mar
Um belo ninho de amor
Carminha se bronzeava
E no cabelo botava flor
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Samuel lhe sussurrava
Belas frases de amor
Ninguém falava em idade
Pois era grande o furor
Carminha se estremecia
Com um fogo abrasador
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Mas depois de algum tempo
E ajuda de uns detetives
Acharam o lar deles dois
Aqueles filhos horríveis
Vinham atrás do dinheiro
Eles eram mesmo incríveis
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Samuel foi recebê-los
Com uma aliança no dedo
E disse pros filhos dela
Casei com ela em segredo
Carminha agora está salva
E nunca mais terá medo
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Vocês não lhe valorizavam
Por mim será bem tratada
Já aplicamos o dinheiro
Ela está bem remoçada
Agora querem sua mãe
Ninguém vai levar nada
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O filho de Carminha
Investiu contra Samuel
Foi lhe dando logo uns socos
O desfecho foi cruel
Carminha entrou no meio
Branca que nem papel
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Tremia que nem vara verde
Gritou por Nossa Senhora
Vão matar Samuel
Salvá-me dessa hora
Ele me trouxe a felicidade
O quê que eu faça agora
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Ela pegou o telefone
E chamou 190
A polícia encostou
O caso pareceu serio
Pois chegaram dando tiro
Sem ter nenhum critério
41
A Polícia pernambucana
A Carminha assustou
Foram tão exagerados
Que a coitada enfartou
Um soldado gritou pro outro
Pedindo um desfibrilador
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E o povo foi se afastando
Pra Carminha respirar
Daí contaram até três
E foram lhe desfibrilar
Carminha levou um sopapo
Começou logo a falar
43
Queria saber de Samuel
Tudo estava a desabar
Achava que ele morreu
Mas a filha veio acalmar
Disse mãe ele levou um tiro
Só vai ter que internar
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A velha perguntou
E o teu irmão como tá
A filha disse pra velha
Ele não pôde escapar
Está crivado de balas
Foi à polícia enfrentar
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Carminha teve outra crise
Ela começou a delirar
Dizia que coisas terríveis
A gente podia conversar
Por que nos descobriam
Só veio confusão pra cá
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O filho morto no chão
Samuel na espinha baleado
Ela estava quase morta
Lhe amparava um soldado
E a causa de tudo isso
Um povo descontrolado
47
Continuava delirando
Primeiro a gente raciocina
Não vai inchado como um sapo
E pulando logo pra cima
Se se pensasse assim
Nunca ia ter chacina
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Um médico apareceu
Carminha parou de delirar
Pois ele deu-lhe calmante
Pra ela parar de falar
Botou Samuel numa maca
E foi todo se internar
49
A filha queria ir junto
Mas Carminha e Samuel
A velha disse Deus me livre
Saia daqui “go to hell”
Estou livre de vocês
E levantou as mãos pro céu
50
A ambulância deu partida
Com destino ao hospital
Uma enfermeira acompanhou
Pra tranqüilizar o casal
Acabou tudo bem
Este amor é imortal
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