segunda-feira, 17 de novembro de 2008


A HISTÓRIA DE CARMINHA E SAMUEL

1

Só se luta nessa vida

Depois os filhos crescem

O que nos espera é a morte

As vistas escurecem

Ficam dois velhos em casa

Pouco a pouco emudecem

2

E ninguém fala mais nada

Se jogam lá num sofá

Vai tudo se acomodando

Esperando a morte chegar

Nem sabem se está perto

Já começam a esperar

3

Numa situação assim

Carminha contou que vivia

Trancada com seu marido

Que só Deus acudia

Pois até pra ir ao banco

Era alguém pra ela ia

4

Nem comida mais fazia

O fogão era brilhando

Os dois assim arreados

Iam se mumificando

Às vezes um marmitex

E que estava lhes salvando

5

A velha disse que um dia

Num surto de impaciência

Olhou pro velho e pensou

Pra que na vida decência

Temos dinheiro pra nada

Estou perdendo a paciência

6

Se esse troço velho

Se for do mundo primeiro

Juro que eu corro no banco

E rapo todo o dinheiro

Vou viver o que me resta

Conhecer o mundo inteiro

7

Só vou deixar reservado

O dinheiro do caixão

Deus me livre de mais velho

Só vou querer garotão

Pra torrar todo dinheiro

E viver com emoção

8

Parece que foi macumba

O velho logo sucumbiu

Nem sentava mais no sofá

Por causa do estado febril

Não passou uma semana

Queimou o resto do pavio

9

Quarenta e cinco anos

Durou esse casamento

Mas temos que admitir

Aquilo já era tormento

E esse povo vivia junto

Por causa dum juramento

10

Enterraram logo velho

Ela voltou pra sua morada

Por dentro estava contente

Iria dormir sossegada

Os filhos iam lhe acompanhar

Mais ela disse que nada

11

Vocês fiquem sossegados

Se é por causa de fantasma

Ele já ficou enterrado

Acabou-se crise de asma

Me acordando de madrugada

Pra ir atrás de cataplasma

12

Os filhos se entre olharam

Não entenderam nada não

Disseram ela melhora

Passou por muita pressão

Mais eles se enganaram

A velha não mudou não

13

No outro dia amanheceu

Bem disposta e descansada

Separou todo dinheiro

E saiu no mundo largada

Nem deixou o do caixão

Ela saiu foi disparada

14

E logo no primeiro dia

Deu um desejo realizou

Foi no cinema ver Zorro

A velhinha se empolgou

Passou numa loja chique

E roupa nova ela comprou

15

Botou batom vermelho

Parecia bem mais nova

Hospedou-se num hotel

Toda linda e cheirosa

De noite pediu champanhe

Estava mesmo gloriosa

16

A gastança começou

Era rica de montão

Gorjeta sempre incluída

A coroa fazia questão

O tratamento de rainha

Lhe dava satisfação

17

Vamos deixá-la relaxando

Na sua cama acolchoada

Planejando suas aventuras

E ver como estão os filhos

Pois eles não tinham pista

Onde enfiou-se esta danada

18

Estava todo muito doido

Até na polícia tinham ido

Já fazia alguns dias

Que a velha tinha partido

E a preocupação maior era

Que a grana tinha sumido

19

Carminha tinha retrato

Em tudo quanto é jornal

E seu rostinho estampado

Causou comoção geral

Agora ela era importante

Por causa do capital

20

Achem nossa mãe querida

Daremos gratificação

Tem que tomar remédio

Sofre muito da pressão

Seus filhos estão tristes

Passando por aflição

21

No anuncio a foto de dela

Com uma carinha de vovó

Colada no ponto de ônibus

O povo lia e tinha dó

Mais ninguém dava noticia

A velhinha virou pó

22

Mas era pó de maquiagem

Estava muito mudada

Não vestia mais vestidão

Agora era legge colada

Um dia ela viu sua foto

E deu muita gargalhada

23

Quem lhe reconheceria

Ainda mais com Samuel

Um garçom simpático

Que ela conheceu no hotel

Só viviam de mãos dadas

A coroa estava no céu

24

Um dia no ponto de ônibus

Samuel olhou pra tal foto

E disse para Carminha

Que velha tão amarela

Carminha disse é mesmo

Eu estou até com pena dela

25

O garçom nem desconfiou

Nada daquela gracinha

Estava mesmo mudada

A danada da Carminha

O que o dinheiro não faz

Ela virou uma cocotinha

26

Mais ela podia ser pega

Facilitar não convinha

Ela disse pra Samuel

Que tal Porto de Galinha

Ele disse boa idéia

E rodopiou a velhinha

27

Da Bahia a Porto de Galinha

É chão que nem o cão

Foram de São Geraldo

Ela não entrava em avião

Dois dias sentados num banco

Deu pra falar um montão

28

Falou das doenças do velho

E o pijama azul desbotado

Da barba de presidiário

E o olhão arregalado

Dos gritos que ele dava

Acordando apavorado

29

Falou também dos filhos

Casal de praga que tinha

Eles nunca visitavam

A pobre vivia sozinha

Falando com as paredes

O velho só tosse tinha

30

Aí o rapaz lhe abraçou

Deu lhe um beijo apaixonado

Prometeu ficar com ela

Nunca sair do seu lado

Pois até lhe conhecer

Também vivia aperreado

31

Ficou sem mãe muito cedo

E nos vinte um ano de idade

O seu pobre coração

Era morada da saudade

Sofria muito nesse mundo

Passando dificuldade

32

Carminha quase chorando

Disse muito emocionada

Que não lhe daria filho

Por estar muito passada

E Samuel só lhe disse

Cuide de mim e mais nada

33

Chegaram em Pernambuco

Compraram um bangalô

Era bem perto do mar

Um belo ninho de amor

Carminha se bronzeava

E no cabelo botava flor

34

Samuel lhe sussurrava

Belas frases de amor

Ninguém falava em idade

Pois era grande o furor

Carminha se estremecia

Com um fogo abrasador

35

Mas depois de algum tempo

E ajuda de uns detetives

Acharam o lar deles dois

Aqueles filhos horríveis

Vinham atrás do dinheiro

Eles eram mesmo incríveis

36

Samuel foi recebê-los

Com uma aliança no dedo

E disse pros filhos dela

Casei com ela em segredo

Carminha agora está salva

E nunca mais terá medo

37

Vocês não lhe valorizavam

Por mim será bem tratada

Já aplicamos o dinheiro

Ela está bem remoçada

Agora querem sua mãe

Ninguém vai levar nada

38

O filho de Carminha

Investiu contra Samuel

Foi lhe dando logo uns socos

O desfecho foi cruel

Carminha entrou no meio

Branca que nem papel

39

Tremia que nem vara verde

Gritou por Nossa Senhora

Vão matar Samuel

Salvá-me dessa hora

Ele me trouxe a felicidade

O quê que eu faça agora

40

Ela pegou o telefone

E chamou 190

A polícia encostou

O caso pareceu serio

Pois chegaram dando tiro

Sem ter nenhum critério

41

A Polícia pernambucana

A Carminha assustou

Foram tão exagerados

Que a coitada enfartou

Um soldado gritou pro outro

Pedindo um desfibrilador

42

E o povo foi se afastando

Pra Carminha respirar

Daí contaram até três

E foram lhe desfibrilar

Carminha levou um sopapo

Começou logo a falar

43

Queria saber de Samuel

Tudo estava a desabar

Achava que ele morreu

Mas a filha veio acalmar

Disse mãe ele levou um tiro

Só vai ter que internar

44

A velha perguntou

E o teu irmão como tá

A filha disse pra velha

Ele não pôde escapar

Está crivado de balas

Foi à polícia enfrentar

45

Carminha teve outra crise

Ela começou a delirar

Dizia que coisas terríveis

A gente podia conversar

Por que nos descobriam

Só veio confusão pra cá

46

O filho morto no chão

Samuel na espinha baleado

Ela estava quase morta

Lhe amparava um soldado

E a causa de tudo isso

Um povo descontrolado

47

Continuava delirando

Primeiro a gente raciocina

Não vai inchado como um sapo

E pulando logo pra cima

Se se pensasse assim

Nunca ia ter chacina

48

Um médico apareceu

Carminha parou de delirar

Pois ele deu-lhe calmante

Pra ela parar de falar

Botou Samuel numa maca

E foi todo se internar

49

A filha queria ir junto

Mas Carminha e Samuel

A velha disse Deus me livre

Saia daqui “go to hell”

Estou livre de vocês

E levantou as mãos pro céu

50

A ambulância deu partida

Com destino ao hospital

Uma enfermeira acompanhou

Pra tranqüilizar o casal

Acabou tudo bem

Este amor é imortal

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