domingo, 24 de julho de 2011
COVA DA MOÇA "UM OTELO NORDESTINO"
A Tragédia da Cova da Moça “Um Otelo Nordestino”
1
A tragédia de uma moça
Estes versos vão contar
Quando foi que aconteceu
Ninguém sabe precisar
Porto Seguro entristece
Somente de ouvir falar
2
Pra contar esta história
Cada um tem sua maneira
Se o povo inventou tanto
O cordel segue à esteira
Pra vê se dá pra contar
A tragédia dela inteira
3
Pode ser até um jeito
Da história registrar
Pois se um dia na cidade
Shakespeare fosse aportar
A tragédia desta moça
Pra Inglaterra ia levar
4
Nós sempre nos esquecemos
Das desordens dessa vida
Só que o caso da moça
Não se fechou a ferida
Na memória coletiva
Ela jamaisfoi esquecida
5
Desta mártir inocente
Sempre o povo vai lembrar
Século e meio se passou
Mas se você perguntar
Aonde ela foi enterrada
Qualquer um sabe o lugar
6
Enterraram ela no mato
Bem longe do campo santo
Este crime passional
Até hoje causa espanto
Lhe acusaramde adultério
Jogaram em qualquer canto
7
Vamos tentar entender
Como ela foi se enredar
E o porquê desta infeliz
Com um monstro se casar
Isto não foi obra de Deus
Mas o cão que foi atentar
8
Ela casou com um juiz
Que transferiram pra cá
Mas quando era pra ele vir
Na hora de se mudar
Surgiram muitos processos
Muita coisa pra julgar
9
Então ele diz à moça
Não vai dá pra viajar
Fulana tu vai na frente
Ajeita tudo por lá
Que eu fico na capital
Vou quando desocupar
10
Mas não tem perigo não
Logo eu vou te encontrar
Faça tudo direitinho
Quando a barca ancorar
Pois em terra vai ter gente
Para poder te ajudar
11
E a moça veio só
Sem lua-de-mel passar
Pensando: “meu Pai do céu...
Isso que é de amargar
A pessoa ser casada
Sem poder aproveitar”
12
E dentro daquela barca
Enjoando pra danar
A coitada quase morre
De tanto o mar balançar
Pois só ficou sossegada
Quando terra foi avistar
13
Tava apreciando a vista
Mas a barca sacudia
Era a entrada da barra
A igreja da Pena via
Seu marido tinha dito
Que do mar ela veria
14
Quando já estava em terra
Veio um cara lhe ajudar
Era gente do doutor
Começou a lhe olhar
A moça rezou o credo
Começou a arrepiar
15
Ele foi pegando as malas
Fazendo tanto elogio
Tinha jeito de ser ruim
A moça logo sentiu
Pois lhe deu mais impressão
Que causou mais arrepio
16
Naquele tempo antigo
Não misturavam sentido
Ninguém sabia direito
O que era ser atrevido
A moça foi lhe tratando
E lhe dando logo ouvido
17
O bicho era debochado
Ela pediu pra parar
Já estava envergonhada
De tanto ele paquerar
Imagine que ele disse:
“Tu é mermo de arrasar”
18
Ela diz: “seu atrevido
Me respeite por favor
Eu sou muito bem casada
Meu marido ele é doutor
Vá parando com esse jeito
E o olhar constrangedor”
19
Deus ajuda chega em casa
Tava limpa e perfumada
Uma mucama ajeitou
Pra dama tão esperada
A moça foi pra janela
Ficou muito deslumbrada
20
A casa dava pra um rio
Era muito confortável
Com as árvores do mangue
O lugar era agradável
As folhas eram tão verdes
Dum frescor inigualável
21
Nesse tempo uma viagem
Durava toda uma vida
As coisas eram tão longe
Que hoje não se acredita
Pois se demora um minuto
O povo logo se irrita
22
Cansada dessa viagem
A moça vai se banhar
Nas mornas águas do rio
Ela tenta relaxar
A coitada nem percebe
Que estavam a lhe espiar
23
Tinha um cara no mangue
Sem que ninguém o notasse
Não tirava o olho dela
Parecendo paparazzi
Pois olhava tanto ela
Como se fotografasse
24
A moça não pressentiu
Mas foi pra casa almoçar
A mucama traz toalha
Pra ela poder se enxugar
E ela dizia: “mucama
Com é lindo esse lugar...”
25
Era tempo de dom Pedro
Não existia motor
Era tudo pelo vento
E muito bem a favor
Por isso ela foi bordar
Para esperar seu doutor
26
Só tomou a precaução
De dizer pra sua empregada:
“Meu marido não está
Para evitar fofocada
Não deixe passar um homem
Pra dentro dessa morada”
27
Ela não exagerou
Por ter tanta precaução
Já que viu pela treliça
O mesmíssimo cidadão
Que lhe ajudou com as malas
Fazendo insinuação
28
Teve um dia o atrevido
Veio limpar seu coqueiro
Ela disse da janela
Decidida bem ligeiro
Aqui dentro desta casa
Homem não vai no terreiro
29
O juiz tá viajando
Eu não gosto de piseiro
Quando ele tiver em casa
Lá pra o mês de fevereiro
Tu podes sair limpado
Tudo quanto é coqueiro
30
Ele abanou seu chapéu
Lhe sorriu malicioso
Pensava que era o bom
Se achava muito gostoso
Mas a impressão que dava
Era de pavor e nojo
31
A moça bota mantilha
Pra fazer uma oração
A mucama lhe traz água
Pra aliviar a pressão
E a moça foi rezar
Pra passar sua aflição
32
E ao fechar o oratório
Seu rosto santificado
Lembrava o de Santa Rita
De tanto ela ter rezado
A mucama se aproxima
Pra lhe dar um resultado
33
A mucama pesquisou
Sobre aquele malfeitor
Vejam o que ela descobriu
Ele era irmão do doutor
Por parte de pai lhe disse
Que uma amiga lhe falou
34
Valha-me Deus disse a moça
O homem é meu cunhado
Vai vê que o doutor nem sabe
Que tem um irmão tarado
Pois se ele soubesse disso
Deserdava este atentado
35
Depois dela saber disso
Mais em casa se fechou
Essa moça bordou tanto
Que o dedo dela inchou
Um dia bateram a porta
Era o doutor que chegou
36
Foi virando a maçaneta
Não esperou ninguém abrir
Entrou com a cara feia
Que parecia um zumbi
A moça sorriu pra ele
Pra tentar lhe distrair
37
A visão assusta ela
Seu amor se transformou
Mandou ele tomar banho
Pra melhorar o calor
Mas ele diz que tá limpo
E ela abraça o doutor
38
Que a recusa e lhe diz
Eu não quero me sujar
Pois numa mulher adúltera
Eu não quero nem tocar
A moça se ajoelhou
E começou a rezar
39
A coitada imaginou
Que era efeito da viagem
Vinte dias numa barca
Dava até pra ver miragem
Ela diz: “se sente ai
E recobre a coragem”
40
Chorando diz ao doutor
Pra guardar sua bagagem
Que também mareou muito
Quando fez sua viagem
E só melhorou um pouco
Quando tomou beberagem
41
A moça grita por chá!
Para acalmar seu amado
Mas ele diz que algo ali
Tinha que ser comprovado
E arrancou a roupa dela
Parecendo endiabrado
42
Chamava-lhe traidora
Que ele tinha uma missiva
Que um anônimo mandou
E a moça erapermissiva
Pois só parecia santa
Mas por dentro era nociva
43
Ela diz que é delírio
Porque sempre foi católica
Temente dos mandamentos
E a história era estrambólica
Que na barca que ele veio
Tinha bebida alcoólica
44
O doutor era moreno
Homem alto e presunçoso
Parecia um estrangeiro
Dum lugar bem perigoso
Perdido sem Jesus Cristo
Estéril e pedregoso
45
A moça ficou sem roupa
Começa a investigação
Num sinal particular
O doutor presta atenção
Pois ele não conhecia
Casou com procuração
46
O sinal era na coxa
Num lugar bem escondido
Um homem pra ver aquilo
Só mesmo sendo o marido
O ciúme tomou conta
Ele ficou possuído
47
O juiz pega a tal carta
Que o anônimo enviou
De dentro tira um desenho
De seu corpo sedutor
E diz:“está certinho
Esse ai te deflorou”
48
A moça grita meu Deus!
Interceda por favor
Eu nunca fui traiçoeira
Meu marido endoidou
Em carta sem remetente
O homem acreditou
49
Mas ele quebra os vidros
As louças do casamento
Os bordados primorosos
Voaram pra o calçamento
Pegou ela nos cabelo
E levou pra o aposento
50
Gritando frases da carta
Dizia:“Quem me mandou?”
A mucama escuta os gritos
Trouxe chá pra o doutor
Mas ele diz que se afaste
E lhe agride com furor
51
Naquela tempo um criado
Era nada pra o patrão
Era tempo dos escravos
Ficavam lá num rincão
Mas essa boa mucama
Não deixou barato não
52
Foi no fundo do quintal
Pra colher uns vegetais
Fez logo uma fogueira
Cantou hinos ancestrais
Clamou pela proteção
De todos seus Orixás
53
A mucama era vidente
Também lia pensamento
No que subia fumaça
Fazia seu encantamento
Pra saber quem acabou
Com aquele casamento
54
Teve a visão da patroa
Vestida só com anágua
Tomando banho no rio
Toda feliz dentro água
E alguém lhe observando
Com a boca cheia d’água
55
Mesmo o cara escondido
Ela via claramente
Que era o irmão do juiz
Aquele mesmo demente
Olhando pra o sinal dela
Na anágua transparente
56
Ela desperta do transe
Corre pra salvar a dama
Mas encontra ela estendida
Já sem vida sobre a cama
E o juiz ao seu lado
Parecendo com Osama
57
Agora com mais coragem
Depois do seu ritual
A mucama diz: “juiz!
Tu é um irracional
Matasse essa criatura
O ser mais angelical”
58
Minha patroa era séria
E isso foi uma armação
Muito bem arquitetada
Pelo teu covarde irmão
O monstro mais invejoso
A imagem da perdição
59
Eis que o irmão do juiz
Foi chegando e escutou
A mucama descobriu
E falava pra o doutor
Ele foi pra cima dela
Com um punhal lhe matou
60
O juiz tentou salvá-la
Das mãos daquele bastardo
E com um tiro certeiro
Derrubou o desgraçado
Ele não soltou a mucama
Morreram tudo agarrado
61
Os vizinhos assustados
Chamaram o ouvidor
Era o chefe da cidade
Veio ver aquele horror
O juiz beijando a moça
Dizendo:“acorda amor!”
62
Estava com ar de doido
Querendo até se matar
Por isso prenderam logo
E mandaram exilar
E até hoje ninguém sabe
Aonde é que ele foi parar
63
As três mortes no quarto
Dava até pra comparar
Com o caso de Otelo
Quem já leu vai se lembrar
Pois o fim foi parecido
Dá até pra comparar
FIM
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